GI Joe – 60 Anos! – Parte 1
2024, especificamente o dia 2 de fevereiro, é um marco de 6 décadas de existência de nosso amado brinquedo soldado, o GI Joe. Para comemorar, vamos fazer uma série de matérias falando dos meandros da criação e do desenvolvimento do GI Joe durante essas décadas e de como ele persiste até hoje como um dos brinquedos mais colecionáveis dentre todas as franquias suas contemporâneas. Vamos tratar dos panoramas históricos e sociais que afetaram esse desenvolvimento e, claro, a maneira como o brinquedo em si é visto.
Quem é a Hasbro
Nossa história começa com a Hasbro, antes Hassenfeld Brothers, uma empresa fundada em 1923 pelos irmãos Herman, Henry e Helal. Então, sim, é uma empresa centenária. Começou em um escritório em Providence, Rode Island, o maior menor estado dos EUA, e inicialmente trabalhava com restos de panos e tecidos e, posteriormente, começa a vender lápis e estojos escolares e material escolar complementar a esses lápis, como compassos, réguas, borrachas, etc. Em 1928, inclui giz de cera (crayons) e tintas escolares.
Assim permaneceu até a Segunda Guerra Mundial, quando inovaram os kits de lápis com argila de modelar ou desenhos para colorir, numa tentativa de manter vendas fora dos períodos sazonais de época escolar. Nessa época, Merril Hassenfeld (19/02/1918, Providence, Rhode Island – 21/03/1979 Providence, Rhode Island), filho do Henry, assume o comando da empresa e começa a expandir suas linhas de produtos, com massinhas de modelar, kits de pintura, e os primeiros brinquedos: kits de brinquedos para meninos, o Doctor e para meninas, o Nurse, para brincar das profissões de medicina e enfermagem.
Merril Hassenfeld
O primeiro grande sucesso da Hasbro no mundo dos brinquedos foi o Mr. Potato Head, o Sr Cabeça de Batata. Concebido por George Lerner, um inventor de brinquedos do Brooklyn, que cedeu os direitos por US$ 500,00 mais royalties de 5%. O conceito aproveitou o advento dos polímeros baratos, vulgos “plásticos”, em substituição aos brinquedos de metal e com a abundância dos anos 50, o kit de peças podia ser aplicado sobre batatas de verdade ou outros legumes e frutas. Mas gerou reclamações se não seria desperdício de comida, já que o período da Grande Depressão não estava tão longe da memória assim, e sobre os legumes podres espalhados pela casa, o que não impediu o sucesso do brinquedo e sua longevidade.
Também tornou a Hasbro uma pioneira do marketing, pois esse foi o primeiro brinquedo, pelo que se sabe, a ter uma campanha de propaganda na recém iniciada era da televisão.
Mas a indústria de brinquedos vive de novidades e está sempre em busca da próxima.
A Barbie
Paralelo a isso, a Mattel, outra empresa de brinquedos em ascensão na época e outra empresa que passou a investir no marketing televiso de seus produtos, buscava seu grande novo bum e, durante uma viagem à Alemanha em 1956, a fundadora da empresa, Ruth Handler (4/11/1916, Denver, Ohio – 27/04/2002, Los Angeles, California) encontrou uma boneca numa vitrine diferente de tudo o que já tinha visto, um presente jocoso de despedida de solteiro, uma boneca de roupas mínimas chamada Bild Lilli. A boneca de figura adulta, embora com um olhar ladino, estava muito em conformidade o que Handler tinha em mente depois de observar como sua filha brincava, atribuindo papéis adultos para suas bonecas e, então, comprou três delas, deu uma para a filha e as outras duas levou para a Mattel. A boneca Lilli foi baseada em uma personagem popular que aparece em uma história em quadrinhos desenhada por Reinhard Beuthin para o jornal Bild. Lilli era uma loira sensual, uma garota trabalhadora que sabia o que queria e não hesitava em usar homens para consegui-lo. A boneca Lilli foi vendida pela primeira vez na Alemanha em 1955 e, embora tenha sido inicialmente vendida para adultos, tornou-se popular entre as crianças que gostavam de vesti-la com as diversas roupas disponíveis, vendidas separadamente, claro.
Ruth Handler, da Mattel
Bild Lilli
Barbie, 1959
Assim, desenvolvendo um produto novo, focado em crianças, a Barbie surge em 1959, primeiro escandalizando as mães, pois até o momento bonecas eram simulacros de crianças e havia um receio sobre incentivar crianças a uma vida de mulher adulta independente, o que mudou quando surgiu a Barbie noiva, indicando que, apesar de ter uma vida e profissões, a Barbie queria casar. Antes disso, alguns comerciantes se recusavam a colocar a Barbie em suas lojas, alegando que passava um modelo errado e permissivo para as crianças. Mas, com a ideia de que a Barbie fazia o que fazia para ter o seu Ken, então a partir de 61, a Barbie começa a se tornar o grande sucesso e se torna um modelo para as meninas, expandindo o modelo Bild Lili de roupas vendidas separadamente para todo um aparato de acessórios, veículos, casas, playsets e tudo mais para a Barbie, incluindo o Ken.
Surge o GI Joe
Observando o fenômeno Barbie, um agende de licenciamento de Manhattan, Stanley “Stan” Weston (nascido Stanley Alan Weinstein; 1/04/1933 – 1/05/2017) criou um conceito de uma figura articulada, que seria um brinquedo para os meninos. Criou os protótipos com cartolinas e cola e o material inicial de marketing e procurou a Hasbro. Merril recusou a proposta, alegando que a Hasbro não produzia bonecas. Entenda, o termo “doll” em inglês não tem gênero definido, assim o termo se aplica tanto para bonecas quanto para bonecos.
Stan Weston
No entanto, na reunião estava o Donald “Don” Levine (1/04/1928 – 22/05/2014), então chefe de pesquisa de desenvolvimento da Hasbro e veterano da Segunda Guerra, que adorou o conceito e a ideia de Stan Weston, mas entendeu que precisava de mais para convencer Merril Hassenfeld. Então passando por uma vitrine de loja, viu um boneco articulado para desenho, o chamado manequim de artista, que desenhistas e artistas usam para simular poses e desenhar a figura humana. Comprou alguns e levou para sua equipe desenvolver o produto numa operação secreta durante as férias de Merril. O chefe tinha dito não, mas Don achou que era bom demais para ser deixado pra lá e colocou sua equipe pra trabalhar mesmo assim.
Don Levine
O conceito militar da figura talvez tenha sido o que mais empolgou, uma vez que a vitória na Segunda Guerra era amplamente explorada no cinema, na TV e na literatura e a Guerra da Coréia foi vendida pela mídia como uma vitória também. Então era o mote certo para um produto inédito. Não que não existissem soldados de brinquedo, mas eram as miniaturas dentro do conceito do soldado de chumbo, sendo os primeiros que se tem notícia produzidos pela Bergen Toy & Novelty Co. (abreviado como Beton) em 1938. Don os queria articulados. E para tornar tudo mais interessante, um dos seus gerentes de produto, Jerry Eihorn, outro veterano da Guerra da Coréia, foi até a base próxima da Guarda Nacional e falou com o General Holland, que forneceu todos os materiais para a Hasbro os copiar em detalhes, deixando tudo o mais fiel possível. Refeito o conceito, a ideia foi apresentada novamente para Merril, que aceitou e mandou chamar Stan Weston.
O desenvolvimento do produto começou e se desenrolou por todo ano de 1963 e ficou tudo pronto para o lançamento na New York Toy Fair de 1964, no dia 2 de fevereiro. Mas foi às vésperas do evento que finalmente o acordo dos diretos foi fechado, pois a Hasbro ainda não tinha se acertado legalmente com Weston. Então ele teve a opção do licenciamento: 50 mil dólares e 1% do faturamento ou 100 mil dólares pelo arremate. Não sabendo se seria ou não um sucesso, ele optou pelos 100 mil.
Os protótipos criados por Don Levine, tinham seus nomes de código, algo usado até hoje: o soldado era “Rocky”, o marinheiro era “Skip” e o piloto era “Ace”. Somente depois eles recebem o nome comercial de GI Joe, com base no filme “The Story of GI Joe” de 1945, que conta a história da infantaria estadunidense durante a guerra na visão de um correspondente. O filme foi indicado a prémios da academia e foi estrelado por Robert Mitchum e Burgess Meredith. Don Levine escolheu o nome quando chegou em casa e ligou a TV e o filme estava sendo exibido e achou o nome perfeito para os seus soldados de ação.
Cartaz do filme "Ernie Pyle's The Story of G.I. joe"
O filme está disponível completo no YouTube em seu áudio original. No Brasil seu título é “Também Somos Seres Humanos”, indisponível em qualquer formato.
Vale lembrar que G.I. vinha estampado nas caixas de materiais e suprimentos distribuidos pelos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial e, ao contrário do que todo mundo pensa não significa "Government Issue" (item do governo), "Government Infantry" (Infantaria do Governo), "General Issue" (Item Geral), e sim. Galvanized Iron, ferro galvanizado, o processo industrial para evitar ferrugem em equipamento. Acabou sendo o termo geram para se referir aos soldados de infantaria estadunidenses nos teatros em que atuaram. O Joe é o nosso Zé e, assim como nós temos o "Zé Ninguém" ou o "Fulano", eles têm o "Joe Doe" para quem não sabem o nome. Aí, qualquer soldado era um "G.I. Joe". O mesmo para a "Fulana", temos a "Jane Doe', que virou a G.I. Jane.
Uma outra coisa importante sobre GI Joe é que nunca foi chamado internamente de “boneco”. Desde o início a equipe definiu que seria uma “action figure”, uma figura de ação, e não um “doll”, pois meninos não brincariam com “dolls” e sim com “action figures”. O Ken é doll, o GI Joe é action figure. Então, sim, a Hasbro criou o termo.
Mais duas coisas importantes a saber sobre os primeiros GI Joes: o corpo humano não pode ser registrado como marca, por isso a Hasbro não podia registrar a figura como um modelo humano. Isso levou a criação da cicatriz na bochecha direita como marca registrada, além de dar um ar de “durão” para a figura. A segunda coisa é que muitos consideram que o rosto do GI Joe original lembra o do Presidente John Kennedy, no entanto, o rosto original do GI Joe foi encomendado pela Hasbro 1963 para o artista Philip Kraczkowski (I916-1996), um famoso escultor de Attleboro, Massachusetts, que alegou ter baseado o rosto em diversas pessoas diferentes, mas que é possível, pois ele ganhou uma medalha Kennedy em 1961. Ele conclui o trabalho em 10 dias e recebeu US$ 600, 00 na época pelo trabalho, uns US$ 5700, hoje. Ele nunca reclamou do preço cobrado, mesmo depois de aferir o sucesso, já que nunca foi informado com antecedência da natureza do projeto, apenas que a cabeça da figura tinha que encaixar num determinado encaixe e que deveria ser produzida no tamanho certo e não em escala para redução posterior.
Philip Kraczkowski
Para o lançamento, o GI Joe não era, também, somente uma figura de ação, era o America’s Moveble Fighting Man, o lutador móvel da América. Vinha com o lançamento inicial no mesmo modelo de negócio da Barbie, com as figuras básicas, no caso o Action Soldier, o Action Sailor, o Action Pilot e o Action Marine, respectivamente o Soldado de Ação, o Marinheiro de Ação, o Piloto de Ação e o Fuzileiro Naval de Ação. E com eles um grande número de cartelas e caixas de acessórios para compor as aventuras básicas. E a primeira figura afro americana é lançada em 1965, sendo um GI Joe padrão, mas em plástico pigmentado de acordo.
Ao contrário do que se diz por aí, o sucesso não foi imediato, muitos vendedores não acreditavam que meninos iriam querer a figura. Os que apostaram na compra tiveram os estoques zerados. Curiosamente, os estoques foram comprados por funcionários da Hasbro a mando de Merril. Dessa forma houve uma parente aceitação do brinquedo com a prateleiras esvaziando e isso despertou um desejo de compra tanto do consumidor quanto dos revendedores, no sentimento de escassez, e isso tornou o brinquedo um sucesso de vendas em seus lotes posteriores. Depois disso, diversas ouras aventuras militares saíram e até mesmo um astronauta, aproveitando o auge da corrida espacial.
Durante anos se achou que a criação do GI Joe era do Don Levine. Isso deixou Weston por anos muito chateado. No entanto, posteriormente, o nome de Weston foi resgatado na história e hoje temos acesso integral a esses detalhes. No entanto, sem Don Levine, o GI Joe nunca teria saído do papel. GI Joe nem se chamaria GI Joe. E Nem mesmo teria sido criado como action figure. Se Weston teve a ideia, Levine criou todo o conceito em cima dela, desde o fato de ser articulado como diferencial até a questão do detalhamento de campanha. Então o GI Joe é um filho de dois pais. E um tio, já que sem o aval do Merril Hassenfeld não haveria produção e sem a coragem dele de investir, não haveria tudo o que vemos hoje de GI Joe. E falamos de coragem porque o desenvolvimento inicial do produto foi tão caro que, se não tivesse feito sucesso, teria falido a Hasbro. E isso é um fato conhecido.
GI Joe permaneceu como carro chefe até 1968, quando o envolvimento dos EUA no Vietnã culminou na Ofensiva do Tet, e uma guerra já impopular, agora televisionando uma grande gafe estratégica dos generais e inteligência dos EUA, mais toda a efervescência social com direitos civis, movimento flower power e a própria Guerra Fria, tornaram o brinquedo soldado menos atrativo, menos pais queriam incentivar seus filhos a serem militares, na verdade começaram movimentos pacifistas contra as armas de brinquedo e similares, e as vendas caíram vertiginosamente.
E o brinquedo precisou se reinventar depois de 1969, tornando o GI Joe de Soldado em Aventureiro, o grande mote dos anos 70.
Mas isso é para a parte dois.
Fontes:
Livros
The Complete Encyclopedia to G.I.Joe. Santelmo, Vincent. KP Books, 1993.
Páginas
https://mundodasmarcas.blogspot.com/2006/08/hasbro-making-world-smile.html
https://dcf.fm/pt/blogs/blog/has-history-mission-ownership
https://en.wikipedia.org/wiki/G.I._Joe#:~:text=Stan%20Weston's%20original%20design%20(1963),-Original%20G.I.%20Joe&text=The%20original%20idea%20for%20the,of%20a%20military%20action%20figure.
Documentários
The Story Of America's Movable Fighting Man, Mitch Lieding, 2002
Brinquedos Que Marcam Época (The Toys That Made Us). Netflix, 2019
Brinquedos Que Mudaram o Mundo (The Toys That Built America). History Channel, 2021
E as vozes na minha cabeça, claro.
Alexandre Rocha Oliveira
Parabéns pelo conteúdo!.
ZAP
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